segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Suposta disposição às 3:58 da manhã

Às vezes penso que sei tudo. Outras, que tenho sempre razão. Uns dias considero-me gira, acho-me magra, sinto-me bem, estou confiante e encontro-me com um humor extraordinariamente positivo. Outros considero-me horrível, acho-me gorda, sinto-me mal, estou insegura e encontro-me com um humor excecionalmente nocivo. É normal, sou mulher. Aliás, é normalíssimo. Mas apesar de tudo isso, tenho a impressão (talvez iludida) de que penso bastante. Umas vezes melhores que outras. Depende da disposição.
Se calhar diria que tenho um certo ciclo a cumprir. Depois de ver o mundo pela primeira vez, é obrigatório receber visitas de meia em meia hora e ver todo o tipo de caras sorridentes e os seus gestos simbólicos, idênticos à mímica, a movimentarem-se em direção à minha nova cara. Vou crescendo, aprendendo a dizer "mãe" e "pai" e a dar uns passinhos com um intervalo de 5 minutos de quedas frágeis pelo meio. Depois de completar a pré primária e o 1º ciclo, já devo ter tido umas 5 bonecas de brincar, uns saltos altos brilhantes para um pé de semi-princesa. Em seguida, passo pela fase da bicicleta sem rodinhas, das coleções de cromos e jogos de cartas. Mais tarde, a matemática complica-se, as responsabilidades triplicam e os telemóveis já são a cores e recebem fotografias. Começo a ter as primeiras festas de dança e no cinema, a viver ridículos amores escolares e a perder muito do meu tempo com inúteis discussões de roupa com as minhas "melhores amigas". Até que faço 16, e tenho de decidir uma área, que restringe as portas do meu futuro a todos os níveis. A minha mãe ainda me leva à escola e nem o arroz sei cozer, mas já tenho que ter em mente que tipo de vida quero levar, que tipo de emprego quero ter. Esforçar-me para as boas notas. Sem esquecer as saídas até às 5 da manhã a dançar em função da música comercial, as idas ao ginásio 2 vezes por semana para compensar as tabletas de chocolate comidas numa só tarde, acompanhar a minha série preferida que relata a história de vida de uma série de pessoas que não existem realmente e as idas constantes e diárias ao facebook, que me deixam a par das novas fotografias do rapaz giro de olhos verdes e da rapariga com pernas altas e esqueléticas. Depois, tento conjugar a minha função de estudante exemplar, filha educada e amiga presente, com a função de realização pessoal momentânea. Quando fizer 18 anos tenho 150 convidados para a minha festa, que promete ser a melhor do ano. Já estudo para tirar a carta de condução e agora passo a tomar decisões por mim própria. Acabo o secundário. Tenho que ter média suficiente para entrar numa boa universidade com um curso acessível. Se falhar, passo um ano a melhorar notas ou vou trabalhar num café para ganhar umas massas. Fazer-me à vida. Viagens curtas com amigos. Festas da faculdade. Namorados a curto prazo. Ter os famosos "melhores anos de sempre". Conhecer o homem da minha vida e casar-me com ele. Arranjar um emprego, construir uma família. Ter uma casa. Se possível com jardim, piscina, um cão e no mínimo uma empregada que me arrume e limpe a casa, cozinhe e trate daquilo que for mais chato. Fazer grandes jantares com entradas requintadas e abrir uma boa garrafa de vinho. Ir correr quase todas as manhãs. Beber café e lanchar com as amigas quase todos os dias. Ir ao cabeleireiro quase todas as semanas e aos fins de semana, ir jantar com os filhos a casa dos avós. Os anos passam a correr. As rugas aparecem, a paciência diminui e o cansaço aumenta. Agora vejo televisão durante o dia e sou eu que recebo os netos aos fins de semana. Costumo ir à praça e à missa. Café com leite e torradas com geleia sempre presentes. Enfraqueço. Acabo por ser enterrada. Relembrada. Razão de missas e intenções. Provocadora de choros de saudade e momentos de boa recordação. Marquei certas pessoas, mas já me fui embora. Para um sítio melhor.
Esqueci-me de alguma coisa? 
Hoje a disposição chegou a um rascunho de nada sobre o que é, para mim, viver:
Nascer, respirar, chorar. Rir, falar, andar.
Ser criança. Ser adolescente. Respeitar a minha tensão hormonal. Aprender a pensar e não a obedecer. Imaginar o meu futuro. Talvez arranje um curso que me suscite um certo interesse cultural, intelectual e pessoal. Lutar por aquilo que realmente quero fazer, mesmo que pareça impossível a olhos alheios. Encontrar o meu futuro dentro ou fora de uma universidade. Experimentar o que tenho a experimentar. Conhecer novas caras e personalidades. Explorar novos sítios. Encontrar-me. Encontrar o meu verdadeiro lar.
Dormir. Sonhar. Acordar com sono, e namorar a cama por mais um instante. Lavar a cara com água fria e olhar positivamente para o espelho, mesmo com uma nervosa consulta ou uma irritante borbulha na testa. Vestir-me em 10 minutos, com aquilo que eu gosto sem pensar se fica a condizer. Dizer "Bom dia!". Saltar para a cozinha e fazer uns ovos mexidos com queijo e orégãos.  
Sair de casa. Apanhar ar. Reparar nas coisas pequenas que me passam à frente dos olhos e do coração. Com 20 ou com 50 anos.
Cheirar uma flor apanhada do chão. Andar sem meias e sapatos. Tomar banho de chuva. Ver fotografias antigas que criam nostalgia. Ouvir uma boa guitarrada. Ler um grande poema. Gritar no cimo de uma montanha. Lamber a massa que restou do bolo. Contar as estrelas. Falar com um estranho. Ajudar um perdido. Rir sem propósito. Andar sem medo. Dançar sem vergonha. Dar sem tencionar receber. Ver o mundo com todas as cores. Aprender a lidar com a boa e a má notícia. Saber ouvir uma crítica e um elogio. Saber pedir perdão e aprender perdoar. 
Explorar! Procurar! Questionar! Chegar às minhas conclusões. Decidir as minhas opiniões. Revoltar-me contra clichés, padrões de vida lançados, preconceitos e juízos pré-definidos. Criar uma revolução. Tornar-me independente. 
Sentir-me concretizada com ou sem casamento, com ou sem emprego fixo, com ou sem casa com piscina e jardim e festejar com ou sem uma garrafa de vinho. 
Fazer-me à vida!  
Criar vários caminhos e seguir a estrada certa. Afinal, é disso que é feita a vida, caminhos e estradas, não é? Vou viver supostamente à minha maneira. Se assim for, supostamente vou ser feliz!
Mas a esta hora, o suposto era estar na cama...

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